Ouvi uma vez Alexandre Herchcovitch dizer que após levar uma de suas coleções a Londres (em 1997), o estilista ouviu uma pergunta repetidamente: onde está a alfaiataria? O tom era claro: faltava dominar a habilidade em fazer “roupa de verdade” para que a marca fosse vista, pelo olhos da imprensa internacional, como etiqueta madura. O raciocínio funciona também para o business: alfaiataria significa peças mais trabalhadas e de tíquete mais alto do que jeans e camisetas.
Essa história foi a primeira coisa que me veio à mente ao navegar pelas fotos do verão 2015 da Hood By Air. Erguida à fama pela maré de streetwear que subiu nos últimos anos, a marca soube crescer com estampas fortes (que viram hit), logomarca consolidada (que já é hit) e o vínculo direto com a turma que acha tudo o que a gente faz cafona e ultrapassado — a mesma que não tira as suas roupas a cada novo clique de qualquer lente próxima, realmente, das ruas. O desfile de inverno passado foi arrasa-quarteirão. Elevou, por exemplo, à décima potência o seu pensamento transgênero, com modelos homogeneizados por apliques longos de cabelo, emplacou prints de radar e sonar que, respectivamente, ganham agora as ruas e as lojas e ainda lançou um grupo de voguing pulando na passarela para abrir o show.
Agora no verão, o salto veio mesmo é na moda. Faz tempo que a HBA faz camisas — as que levam suas três letras já passaram para a coleção permanente da marca —, mas desta vez a alfaiataria foi significativamente expandida por Shayne Oliver, capitão dessa história toda (aqui o link com a consideração de Herchcovitch, apenas um dos pontos de contato quando penso na trajetória das duas grifes). Teve, então, roupa de gente grande: blazers com recortes unidos por molas desmembradas como alfinetes, zíperes, fivelas e alças utilitárias mais camadas extras. As calças se transformam em bermudas com alguns cliques de botão. Se são as camisas que dominam a temporada de Nova York, as de Shayne são as mais remixadas em versão sem mangas ou com mangas independentes, acopladas aos ombros por alças finas. As duas mais legais, depois de tanta experimentação, são a marinho, cujo abotoamento fica por baixo de duas faixas de tecido fechadas como um blazer amolecido, e a que leva estampa fotográfica de um rosto aflito, vista na penúltima entrada do desfile.
O intervalo na alfaiataria trouxe as roupas mais casuais. Pra lembrar que todo mundo vai querer a jaqueta (que promete ganhar etiqueta caríssima) de couro com o logo da marca, a peça entrou em oito looks seguidos, todos acompanhadas pelos mesmos jeans preto com patches de couro estampado com as iniciais da marca nos joelhos. Antes deles, mais jeans ganharam texturas emborrachadas, manchas ou rasgos desfiados ao longo da perna; tem pra todos os níveis de fashionismo.
Não foi só a moda que amadureceu, o discurso também. A sequência de looks conceituais — com modelos (brancos) presos a grande placas de acrílico pelo pescoço e pelos punhos, como escravos — trouxe imediatamente à memória as notícias mais recentes vindas de Ferguson, no Missouri, caso que concentra as atenções dos norte-americanos por demonstrações impensáveis de racismo. Shayne rebateu, em entrevistas, que o protesto ali era contra o consumismo, mas é difícil dar importância às intenções depois que o look ganha a passarela. Como se não bastasse o rol de novidades que a Hood By Air leva às suas roupas, coube à ela a missão de fazer o link do circo fechado da moda (ainda mais em tempos de semana de desfiles) com a realidade.
No meio de tanta camisa branca transformada em vestido, estampas florais ou longos regata com fendas das outras, o ativismo não-confesso da Hood By Air faz com que esse transporte das notícias à passarela ganhem cara de novidade. Não é. Mas no panorama dos desfiles atuais, senso de atualidade parece um estreante, tão raro quanto o casting diverso que cruza (sempre) a passarela da marca. Ainda bem que alguém faz questão de lhe garantir um retorno à moda.