Karl Lagerfeld: o estilista alemão da Chanel que dominou a moda francesa

Karl Lagerfeld morreu em Paris nessa terça-feira (19.02). Um dos nomes mais reconhecidos até por quem não acompanha as minúcias da área, o estilista alemão dominou a moda francesa ao longo dos 65 anos de carreira como uma mente das mais criativas (e igualmente polêmicas) de seu tempo. Das criações de ateliê dos anos 1950, Lagerfeld capitaneou e capitalizou mudanças mais significativas do mercado, da abertura às ruas ao posto no topo da pirâmide do mercado de luxo em suas mais diferentes, e poderosas, iterações.

Com a notícia, reuni em sete tópicos alguns dos assuntos que vieram à mente, em modo aleatório, sobre o trabalho, o legado, as ofensas e as coleções marcantes que pontuam, para mim, os capítulos da era do “kaiser”. Na sequência!

O LEGADO NA MODA

Karl Lagerfeld é o estilista da velha geração que morre sem deixar um look definitivo, uma revolução, uma ideia resumível como os grandes antes dele. Compare, por exemplo, com outro nome de carreira impulsionada ao mesmo tempo, Yves Saint Laurent, que, junto com Karl, ganhou prêmio dedicado a novos talentos no mesmo ano (1954) como pontapé inicial. O trabalho solo de Karl Lagerfeld sempre foi menor do que o desenvolvido nas grifes que liderou; talvez esta seja diferença crucial que pode ser vista como a mais admirável das qualidades de sua carreira, e não como algo menor em relação aos contemporâneos.

Não há paralelos entre outros grandes para o modo pelo qual ele transformou as marcas Chloé (bem na virada da moda francesa ao ready-to-wear), a Fendi (em um tratado sobre excelência técnica de mais de 50 anos com os materiais mais famosos da casa, couro e pele) e a Chanel (dormente até sua chegada em 1983 e hoje talvez a mais reconhecível marca francesa gigante ao seu molde). Isso mostra o quanto ele entendeu, usou ao seu favor, subverteu, adaptou, ironizou e dominou, como nenhum outro, o que é trabalhar para e com uma grife ao longo de mais de sessenta anos sob todas as transformações ao seu redor.

Dá pra pensar que o comprometimento criativo de Karl Lagerfeld com tudo o que fez (coisa pra caramba) é o seu legado mais marcante se a gente falasse só de trabalho. Só que aí tem a figura, que não é apenas uma cria do sistema que endeusa estilistas-estrela mais recente, mas também fruto do que nós conhecíamos de sua personalidade – dos lados mais admiráveis aos mais repreensíveis. “Criar é como respirar, e se não posso respirar, estarei em apuros”, disse uma vez o nome que, além de estilista, também tocou com sucesso em outras áreas criativas como a fotografia, o design de interiores, a curadoria cultural e o marketing pessoal.

Por estas diferenças é que a leitura de uma matéria da musa-mor Robin Givhan, de 2012, é interessante, pois atravessa a imagem intocável do “gênio criativo” e toca em como esses fatores paralelos à moda que Lagerfeld colocava na passarela são inseparáveis na revisão de seu trabalho. A matéria começa com “Karl Lagerfeld is overrated” (“Karl Lagerfeld é mais aclamado do que merece”), leia no link >>>

ÍNTIMO E IMPESSOAL

É boa de ler também a história da disputa amorosa por Jacques de Bascher, nome animadíssimo, meio gigolô, meio influencer de sua época, entre Lagerfeld e Saint Laurent. Siga o link para mais >>>

Engatando no assunto, Lagerfeld nunca assumiu publicamente um relacionamento amoroso. Entre entrevistas, são famosos quotes como “eu só durmo com acompanhantes de luxo”, “sou um puritano” ou “não gosto de transar com alguém que realmente ame”.

O comportamento elusivo contaminava também sua relação com o ativismo em prol da causa LGBTQ. Ele foi um dos estilistas gay de grande sucesso, sim, mas num segmento que tem relação incestuosa, em seu alto escalão, com a causa: enquanto é sustentada por uma quantidade enorme de profissionais – renomados ou não – homossexuais, a moda de luxo de tal patamar hesita muito em tocar diretamente no assunto, em apoiar publicamente ações afirmativas ou em levar ao seu imaginário criativo a representação de alguém que não seja, ou imprima, a tal normalidade (com ótimas exceções, claro, mas menos frequentes no panteão das grifes como nas quais Lagerfeld trabalhou, tomadas como referência aqui).

Uma sequência de episódios elucida o comportamento conflitante de Karl: anos depois de condenar o “establishment” do casamento gay e problematizar a adoção através de série de quotes ofensivos, ele encerrou com casal de noivas e “filho” um desfile da Chanel no ano em que a França votava sua legalização, em 2013.

OLD IS NOT COOL

Há figuras que a gente acaba considerando mais por deferência ao passado do que pela relevância cultural. Karl Lagerfeld era um deles, talvez o último representante ativo da velha moda do século 20 que vai finalmente (e finamente) ficando pra trás. pic.twitter.com/HqIOHamLvV

— Eduardo Viveiros (@eduardoviveiros) February 19, 2019

Como comentei acima, por tais motivos específicos é mais difícil ainda dissociar o trabalho do homem. O próprio Lagerfeld fazia questão de misturá-los a ponto de se tornar quase que um simulacro em empreitadas criativas que extravasavam as grifes nas quais trabalhava. Assim, tomar os quotes famosos do estilista de forma apenas superficial ou, pior ainda, justificá-los sob a tal genialidade não passa mais, nem mesmo sob a sombra de sua morte.

Lagerfeld atirou contra todo mundo que desviava de sua visão de normalidade – talvez um tanto abrangente, sim, mas ainda assim problemática e nociva quando o seu nome e seu trabalho eram tão vinculados a um ideal de “perfeição” que a moda de luxo insiste em vender para sobreviver. Ele disparou gordofobia, islamofobia, percepções nocivas à relação das mulheres com seu corpo, premissas sinuosas sobre homossexualidade, ofensas à mulheres públicas do showbizz à política… a reflexão publicada pelo site Wear Your Voice e traduzida pelo site Queer Feed reúne os principais casos, leia aqui >>>

Além disso, de volta ao trabalho nas passarelas, apesar de fazer produtinhos engraçados, sugerir seu “supermercado de estilos”, desenhar coleção hiphop, encenar protesto feminista e dar certo espaço a modelos e criativos de diferentes backgrounds, faltou a Lagerfeld tocar no tabu que é a diversidade para a tal alta moda (ainda intocado de modo geral). É uma transformação crucial do mundo (da moda) que ele não conseguiu incorporar ao trabalho, ou mesmo à visão público-pessoal.

A gente pode chamá-lo de “o grande estilista do mercado”, um tanto para o bem, mas também para o mal? Se vale revisar o lado bom do legado, não dá para perder a oportunidade de revisar o lado ruim também. Sobre “olha esse cenário que lindo”, imagina como hoje soaria a ideia da grife que transportou um pedaço de iceberg da Suécia até o centro da cidade de Paris para cenário de desfile (inverno 2010)? Outro exemplo rápido.

Imagine, for a moment, if Karl Lagerfeld hadn’t been fatphobic. Shit, imagine if he’d been like “fat women are beautiful and deserve beautiful clothes.” Imagine the impact that would have had.

— Amanda Richards (@amandakater) February 19, 2019

https://twitter.com/giuu/status/1097854072433065984

KARL NO BRASIL

Em entrevista, Karl revelou que veio pela primeira vez ao Brasil para um casamento, em 1963. Depois disso, só cinquenta anos depois, em 2013, para festejar a abertura da mostra “The Little Black Jacket” na OCA do Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Antes desta, diferentes oportunidades de viagem foram canceladas; no começo do mesmo ano, redigi a nota que comentava mais uma, para lançar sua Melissa, após Lagerfeld tomar conhecimento do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, preocupado com questões de segurança >>>

ESTILISTA SUPERSTAR

Quando a internet “abriu” processos de moda lá no começo dos 2000, Lagerfeld foi um dos primeiros a despontar por conta da figura criativa, original, polêmica e impactante. Em 2005, viu seu trabalho esmiuçado pelas câmeras do (incrível) Loïc Prigent na série Signé Chanel (assista a todas as partes começando por aqui), que acompanhava as semanas de trabalho antes do desfile de inverno 2004 da alta-costura da maison. Dois anos depois, teve mais porções da vida abertas nas telonas com Lagerfeld Confidential, que ajudou a firmar essa versão do “gênio indomável” que se associa ao estilista.

Além de entreter, a personalidade do estilista também vendeu. Muito. Quase tudo que você pode imaginar. Lagerfeld deu pontapé inicial à febre de colaborações hypadas entre grifes de cima e fast-fashion‘s de baixo ao ser o primeiro do tipo a lançar sua coleção em parceria com a H&M, em 2004. Além de impulsionar este rolê, também lançou sua carreira paralela em empreitadas a quatro, ou a muitas, mãos.

Fora da Chanel, desenhou Coca-Cola light, quartos ou hotéis inteiros, interiores, anéis de noivado, roupas para a Riachuelo, calçados para a Melissa, maquiagem (com a gata Choupette), short de piscina, lápis de cor, capacetes, décor de helicóptero… em entrevista à Veja, resumiu o espírito empreendedor assim: “na moda, há que ser oportunista”.

Outro item lançado, o livro “The Karl Lagerfeld Diet”, capitalizou em cima de uma “história de sucesso” digna da moda: os muitos quilos perdidos em 2000 e 2001, motivado pela silhueta superskinny popularizada pelo trabalho de Hedi Slimane no comando da Dior Homme.

Sob seu olhar, viagens foram comoditizadas também através da série de excursões fashionistas que Lagerfeld pilotou para as coleções cruise e pre-fall da Chanel, que firmaram recentemente a experiência exclusiva de clientes A++ de grifes de luxo como mais uma das metas inalcançáveis ostentadas periodicamente. Firmar a bandeira das grifes (como o desfile na muralha da China da Fendi em pleno boom do mercado asiático de luxo) por novos horizontes era bônus proveitoso, digno do status de imperador da moda.

#TURMINHA

Karl Lagerfeld tem algumas turminhas dignas de destaque. A lenda viva André Leon Talley já contou diversas vezes sobre a importância de sua aproximação com o estilista nos anos 1970 – ele repetiu e entregou mais detalhes de sua convivência em depoimento emotivo após a morte. Na mesma época, Karl tinha como modelo favorita a francesa Inès de la Fressange, uma das primeiras a vestir, com honraria, a sua Chanel. É notório o caso da briga da dupla, reconciliada duas décadas mais tarde, motivada pela ideia de Karl em ver Inès como Marianne, símbolo da República Francesa, recebida com menos empolgação pela modelo na época.

Depois, Karl fez do time de supermodelos dos anos 1990 as encarnações perfeitas de seus rompantes mais criativos sobre o legado de Coco Chanel ao longo da década. Entradas de Linda Evangelista, Naomi Campbell, Cindy Crawford, Helena Christensen. Claudia Schiffer e nomes-satélite como Amber Valletta, Carla Bruni, Yasmin Le Bon e Kate Moss ajudaram a construir o impacto das letras C’s intercaladas sob o comando de Lagerfeld.

Um pouco mais pra frente, Karl começou a introduzir seus modelos masculinos favoritos na passarela da grife: Baptiste Giabiconi virou favorito (diz que circulava além das passarelas com o estilista também, hehe), enquanto Brad Kroenig desfilou tanto, mas tanto para a grife que tornou até seu filho, Hudson, famoso. Fora dela, talvez o homem mais próximo a partir do final dos 2000 foi o produtor Pharrell Williams, que ganhou até um par de tênis customizados em collab (+ Adidas) bem rara da maison.

O mais recente a ganhar projeção pela presença na grife foi Alton Mason, o primeiro negro a riscar a passarela, em dezembro de 2018 (cof-cof). Não dá pra falar dos garotos de Karl sem mencionar Sebastien Jondeau, ex-segurança do designer tornado it-boy, modelo e marido de herdeira fashion.

Karl teve algumas temporadas de turma musical com vozes recentes favoritas nos desfiles da Chanel – “basta se manter informado”, comentava sobre o gosto musical atualizado – com feats de Lily Allen, Florence Welch e Cat Power. Na Fendi, é famosa a história de quando Lagerfeld convocou Azealia Banks para uma festa da marca, na vibe “odeio ser explorada pelo mundo da moda”.

Pra fechar as conexões, é também do círculo mais próximo de Karl Lagerfeld que sai sua sucessora. Virginie Viard, braço-direito do diretor criativo há 30 anos, foi anunciada no mesmo dia da morte do estilista como a nova responsável pelas coleções em seu posto de diretora do estúdio de criação de moda.

Ela começou como estagiária, seguiu os passos do alemão à Fendi e depois retornou à Chanel com assinatura presente em todas as coleções da última década – é também sempre vista na companhia de Karl nos docs mencionados. Engraçado não a revelarem no anúncio oficial como diretora criativa, né?

Agora, se torna a primeira mulher à frente da marca desde… Coco Chanel! Não espere por uma revolução, diz até que Karl deixou várias indicações sobre os caminhos futuros da grife, mas fico ansioso pelo que vem à frente, provavelmente de forma inicial na próxima coleção cruise (em maio) e em nova era real-oficial com a próxima alta-costura, em julho.

MEU DESFILE FAVORITO

Revisando o trabalho de Karl na Chanel que acompanhei desde que me apaixonei pela moda em 2005 e observando os comentários de colegas, pensei como era fácil gostar da grife nos anos passados e começar a gostar de moda por ela, quando, já gigante, começou a ficar (ou aparecer) ainda maior na metade final dos 2000, meio que um pico da “internet de moda”.

Era o desfilão que a gente via completamente deslumbrado (pra bom), tinha link com a história da moda (via Coco Chanel e o seu legado), representava o lado mais glamouroso e refinado das coleções (às custas de muito tweed, chiffon e brilhos). Era também o desfile “perfeitão” e cada vez mais espetaculoso. Já era gigante quando os outros nomes ainda não tentavam ser tão imponentes quanto (até mesmo porque não conseguiam), algo que ajuda a entender o impacto pra quem viveu tal fase (pelo menos em mim).

O meu desfile favorito da Chanel, apesar de tantas outras imagens talvez até melhores, é um mais “simples”, de verão 2007. É o que sempre voltou à minha cabeça quando as coisas começaram a ficar repetitivas demais, nessa fórmula dos últimos cinco, seis anos que, por mais aliada a um raciocínio de sucesso, não empolgava tanto.

Revendo seus cliques, acho que uma das coisas que mais me conquista é a sua “facilidade”, construída com esperteza sobre pilares históricos da grife. Renovados pela juventude aparente das roupas (hot-pants!), a coleção era, ao mesmo tempo, cheia dos símbolos mais fortes da maison (pérolas, camélias, tweed, jaquetas, preto e branco, correntes) apresentados de forma luxuosa, sim, mas também leves – para as estações mais quentes, sim, mas também como imagem final.

Ainda adoro as ideias prontas para vestir (que serviriam para quem pode ou não comprá-las) com dose de fantasia a la balneário chic, mas também com pé nas meninas famosas que despontavam em sua época e eram alvo de todos os flashes – o vestido de paetês preto de mosaico artístico seria vestido, logo depois, por Lindsay Lohan, por exemplo. O casting estrelado ajuda, claro, assim como o espetáculo da cenografia (elas saíam todas desse meio vestiário, meio loja construído no centro do Grand Palais), mas ainda um tanto intocados pelo furor internético e midiático que ambos os fatores se tornariam anos depois.

Super pessoal, sim, como o gosto de qualquer um, mas sempre pensei no quanto queria ver a Chanel voltar a desfilar uma coleção como esta. Saudosismo bobo, assim como o de quem lamenta entristecido o “fim de uma era” com a morte de Lagerfeld (interpretada nesse texto de Vanessa Friedman). O próprio pedia por menos apego: “eu não tenho nada a dizer. Na verdade, faço questão de garantir com que eu não seja lembrado.”

https://www.instagram.com/p/BuEcwKdgAzc/

Para terminar, compartilho meus dois encontros mais próximos da Chanel de Lagerfeld: o robô da grife que desfilou no verão 2017 em clique meu durante o Festival de Hyères 2017 (dá pra dizer que seria o Karl do futuro? rs) e, semanas depois, a primeira vez em que vi Nicole Kidman, de Chanel, com os próprios olhos na chegada ao gala da amfAR, em Cannes.

https://www.instagram.com/p/BUiNRuzF_Jx/

https://www.instagram.com/p/BTZzsd3l0Gv/

10 livros para relembrar o universo de Karl Lagerfeld e da sua Chanel