Queer, de Luca Guadagnino, ensaia intimidade em meio a suor e sêmen

Por Pedro Tubiana/Nonada Jornalismo

Luca Guadagnino mente quando diz que há muito esperma nas cenas de seu novo filme, Queer. O fluído, quando aparece, é apresentado em doses homeopáticas, em resquícios que mancham o tecido da roupa ou do lençol. O suor, por sua vez, é onipresente. Os corpos cobertos de água e sal evidenciam uma estranheza, visto que Luca consegue fazer do México e do Equador, cenários do filme e tipicamente associados na cultura pop ao calor e à efervescência,  locais de uma deslocada frieza. 

A palavra que dá nome ao filme, “queer”, pode ser traduzida como bicha, mas carrega na língua inglesa o sentido de algo estranho e deslocado, como muito do que o filme apresenta também é. Seja a paisagem da cidade observada da janela de um prédio, os cenários perfeitamente montados ou mesmo uma visão panorâmica do espaço urbano – que fica parecendo uma maquete -, tudo parece pelo menos um pouquinho fora do lugar. Um pouco para a direita, um pouco para esquerda, são tentadas movimentações até o enquadramento encaixar. A evidência do sentido, no entanto, dura pouco, e a estranheza toma novamente seu lugar, reinando absoluta.

Pode-se perfeitamente descrever dessa mesma forma a relação de William Lee e Eugene Allerton, personagens sob os quais se desenrola a narrativa. São os sentimentos que um sente pelo outro que traçam os rumos do filme, dividido em três atos e um epílogo. Dentre esses sentimentos, é possível reconhecer o amor. O diretor do filme afirma que essa não é uma história de amor incorrespondido, e sim uma sobre como as pessoas respondem a esse sentimento e sobre os desencontros de quem ama.

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Um amor estranho. Duas pessoas que tentam, a cada aproximação, diferentes estratégias para ensaiar uma intimidade até que ela se torne real. As cenas de ações sobrepostas aos corpos estáticos que se encaram concretizam essa dança. Acontece que, a cada dois passos certos, um sai fora do ritmo. Momentos de acalento são sempre seguidos de uma incomunicabilidade fria. São personagens aprendendo a dar vazão ao amor, sujeitadas ao espaço, ao tempo e à linguagem. 

William Lee, interpretado magistralmente por Daniel Craig, quer ultrapassar o limite linguístico, conversar sem a necessidade de falar. O ator, aqui desprendido do referencial perfeito de masculinidade representado por James Bond, dá vida a uma personagem falha, sensível e queer. É essa necessidade de Lee de acessar Allerton – que na interpretação de Drew Starkey esmaece quando comparada com a de Craig – sem limites que leva o casal a uma jornada pela floresta amazônica. 

É o final dessa busca que faz o longa tomar um caminho diferente do livro homônimo, de autoria de William Burroughs, padrinho da geração beat. O terceiro ato e epílogo imaginam um final possível para o texto inacabado. Um final onde essas personagens conseguem, de fato, interagir telepaticamente, abrindo as portas mais íntimas do inconsciente, das quais o público espectador não tem acesso. O que se revela fica restrito aos amantes que vivem de forma única e ao mesmo tempo universal aquela experiência. 

Dada a estranheza da relação, é difícil compreender com exatidão todos os comportamentos do casal. Nem sempre é possível sentir algo pelos personagens em tela. A relação do público com o filme também é essa: de distanciamento e aproximação. A estranheza não só reina entre Lee e Allerton como transborda a tela e invade a audiência. Não é, de todo modo, um sentimento ruim. É um modo de viver e experienciar o mundo comum a quem é queer, ou bicha. O deslocamento dita o caminho da vida que é preciso aprender a navegar. 

Difícil não lembrar de All Of Us Strangers (Todos nós desconhecidos), que poderia muito bem se chamar “All Of Us Queers”, longa dirigido por Andrew Haigh e exibido no Brasil no início deste ano. São infinitas as diferenças entre as produções, mas a solidão gay e a necessidade de um vínculo significativo com outro ser humano atravessam ambas. Os finais, solitários mas cheios de amor, também se parecem. Ambas as conclusões giram em torno de decisões sujeitas a um tempo e espaço que parecem a todo tempo escapar do amor, que existe sobretudo. 

Curioso que dois longas do mesmo ano, histórias de personagens queers, lidem de forma tão potente com um motivo tão similar. A essas repetições é interessante manter o olhar atento, preparado para a possibilidade de captar o espírito e imaginário de uma comunidade que ainda busca palavras que apreendam sua descrição. 

Este texto foi republicado do site Nonada Jornalismo, clique aqui para ler a publicação original.

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