Gypsy Sport, verão 2018: é a rua que derruba os reis

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
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Se no verão 2018 Paris se viu na encruzilhada que é andar adiante, mas com uma bola de ferro com a label “passado” presa aos pés, um grupo radical chegou sem aviso prévio de Nova York e rendeu fôlego extra à semana de moda. E, melhor ainda, na direção oposta do tal fenômeno da livre imigração das grifes transformado em fervo midiático (“Nova York está arruinada!”) às vésperas da temporada.

O show foi fácil de ser visto, mal precisava de convite, mas ainda assim quase nenhum veículo o cobriu. Aconteceu como operação ilegal na sexta (29.09), no meio da rigidez dos hábitos franceses. A locação ocupada foi a Place de la Republique, palco frequente de manifestações. Na de moda do dia, show da Gypsy Sport, marca jovem pilotada por Rio Uribe. O estilista nativo-americano nasceu em Los Angeles, tem ascendência mexicana, já trabalhou na Europa, mas sonha em projetar o panculturalismo de seu coletivo mundo afora a partir do QG-porão no famoso (e ameaçado) garment district, em Manhattan.

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.

Uribe conhece bem Paris pelas muitas visitas ao longo dos seis anos em que trabalhou na Balenciaga. O cargo não era no estilo, mas no visual merchandising. Após mudar para NY e uma sequência de empregos no varejo, emplacou um posto no estoque, onde ficava entre as visitas dos amigos à loja do Chelsea (na turma, Shayne Oliver e Telfar Clemens). Acompanhou o sucesso da era Nicolas Ghesquière e abraçou quando pôde a oportunidade de migrar ao VM, onde passou a receber inputs do próprio diretor criativo a cada troca de coleção.

“Queria que Nicolas colocasse os chapéus que eu fazia na passarela da Balenciaga, mas eles nunca se interessaram, talvez achassem simplórios demais”, revelou ao site Fashionista. Foram os chapéus também que o projetaram à colaboração com a DKNY seguida pelo pedido de sessenta unidades para vender na Opening Ceremony. Dois dias antes de chegarem às prateleiras, Rio deu nome à marca.

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De volta a Paris, Uribe embarcou desta vez com a mesma ideia do primeiro desfile solo que fez em Nova York, em 2014: ocupar repentinamente um lugar público famoso por reunir vozes nos protestos que sedia (em Manhattan, o show foi no Washington Square Park). Ao invés de encarar a viagem apenas como uma mudança de endereço, a grife planejou intercâmbio cultural iniciado pelo chamado de casting já tradicional nas redes sociais (só que este em francês) para reunir elenco afiado de ativistas de estilo do novo destino.

Na coleção, focou em um elemento-chave para retomar o viés mais contestador de suas apresentações: a disrupção. A escolha é pertinente. Na linguagem das roupas, ela não precisa de muito esforço de tradução. Carrega facilmente por qualquer lugar que viva sob a mesma gramática visual os traços contestadores, divisores ou negativos associados à sua estética. Quem olha para roupa reconfigurada, reapropriada ou de acabamento puído (proposital ou casual) oscila geralmente entre dois opostos: apoio ou rejeição.

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.

Sob o aspecto ruidoso da coleção, uma nova ordem foi construída através de exercícios de ruptura. Uma logomarca (da Coca-Cola) virou ativismo  (“co-exista”). As notícias, ficcionais nas estampas de um conjunto vazado ou verdadeiras ao redor da semana, foram ressignificadas pela visão criativa de um líder; na moda, em direção oposta à da realidade através de olhar pacificador. O sonho americano apareceu seminu. O jeans, tecido originalmente de trabalho, vestiu festivamente quem rompeu com as tradições binárias ou foi transformado em roupa quase íntima, só que à mostra.

Tecidos vintage, retalhos, tricôs e costuras malemolentes de aparência caseira cobriram corpos esguios, mas também despiram silhuetas reais. Souvenirs como chaveirinhos da Torre Eiffel marcaram a pele de quem representou de maneira desafiadora os mal vistos pelos turistas. Das paredes das estações de metrô da região, cartazes rasgados foram transformados em vestidos longos a la couture do lixo.

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.

Os crochês de sua avó, as roupas e tecidos próprios (por coleta ou criação), a riqueza do grupo… ver matéria extraída da história e das convicções do estilista-chefe cruzar a praça propõe discurso bem mais potente do que qualquer veste de época das passarelas que carrega valores ultrapassados de seu período original. Na Gypsy Sport, ostenta-se significado, exalta-se o que é comum e celebra-se quem é tradicionalmente colocado para fora dos limites que separam centro (da moda) e periferia (em Paris, de maneira tão delimitada).

Ainda que a imagem não pareça novidade, sua força de expressão se faz novamente incendiária. A marca rejeita as amarras da tradição; o faz num marco de sua cidade-ícone. Com o olhar à frente, foca no contato direto com quem lhe assiste de diferentes pontos da malha urbana. Hoje, D-I-Y (expressão para faça-você-mesmo) são três letras que imprimem muito mais credibilidade para novos espectadores (também digitais) do que V-I-P.

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.

A apresentação pede reflexão importante sobre como a moda francesa dos gigantes insiste no isolamento. Cada avanço é custoso, milimetricamente calculado. Não há margem de risco quando se trabalha com faturamentos bilionários. A consequência de tamanho controle? Falta de espaço para vigor criativo que dê conta dos novos consumidores; é justamente de olho neles que grande parte dos (velhos) criadores está. Se é de cima que a moda de Paris mede o mundo, a Gypsy Sport convoca para detour urgente para as margens.

Por fim, a mudança de endereço de raciocínio burocrático não importa a Rio Uribe. Quem tem segurança no discurso pode abrir mão dos pormenores; quem é independente, pode-se dar a novos luxos. Um desfile como este conseguiria, como é parte dos planos, encontrar o seu grupo em diferentes pólos urbanos pelo mundo; os desafios enfrentados por quem os habita são cada vez mais universais.

Sob ameaça, valores representados por Marianne, a personificação dos ideais republicanos franceses no monumento central da praça tomada, encontram-se com a mensagem colada no seio desnudo de uma das protagonistas da performance. As palavras saíram dos gritos das manifestações que tomaram Paris dias antes do desfile e valem tanto para a moda quanto para o contexto histórico que a envolve (como toda boa e genial ideia que já ganhou as passarelas): “foi a rua que derrubou os reis, foi a rua que derrubou o nazismo”.

Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
Gypsy Sport, verão 2018. Fotos via Vogue Runway.
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